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Agora, a oficina online poesia feita de quê? possui um blog próprio http://poesiafeitadeque.blogspot.com/. Estão todos convidados: participem!

terça-feira, janeiro 30, 2007

A FLAP é FaSHion?

A poeta Ana Rüsche e mais uma porção de especialistas em fazer castelos de areia + advogados em causa alheia, própria e perdida não sofrem de anorexia, não são socialites, mas...agora são colunáveis.

Aliás essas colunas sociais já foram mais seletivas, só que eram bem mais chatas.


Mônica Bergamo
Folha de S. Paulo, 29 de janeiro de 2007

QUASE LÁ Os organizadores da Flap -corruptela alternativa da Flip, a Festa Literária Internacional de Parati-, que até agora faziam o evento com recursos próprios, estão buscando patrocínios para ampliar sua programação. Querem trazer autores latino-americanos na próxima edição, em julho

quarta-feira, janeiro 17, 2007

NOS DESVÃOS DA URBE

[Auto-retrato do poeta Fabio Weintraub]

Entrevista com Fabio Weintraub
por Andréa Catrópa


Em entrevista exclusiva para o blog O Casulo, o poeta e editor Fabio Weintraub, autor de Novo endereço (prêmio especial Casa de las Américas, 2003), fala sobre o desafio de figuração poética da experiência urbana atual, sobre o problema do desenraizamento, associado a políticas públicas segregadoras e higienistas, além de adiantar algo sobre o novo livro de poemas em que está trabalhando.

Como você se envolveu com os moradores da Ocupação Prestes Maia?

Cisco nos olhos da rua

Foi em dezembro de 2005 que conheci o Severino Manoel de Souza, catador de lixo, morador da Ocupação Prestes Maia (do Movimento dos Sem-Teto do Centro, MSTC) e um dos principais responsáveis pela Biblioteca Comunitária que funciona ali há pouco mais de um ano. Apresentou-me a ele a artista plástica Yili Rojas, durante um protesto contra a decisão da Prefeitura de São Paulo de cimentar o vão daquela rampa subterrânea no final da Avenida Paulista (que a liga à avenida Doutor Arnaldo). Tal iniciativa – denominada pela imprensa como rampa antimendigo – foi levada a cabo por determinação do senhor Andrea Matarazzo, subprefeito da regional da Sé, para expulsar os mendigos que lá se abrigavam, sob concordância do então prefeito José Serra. A razão alegada para tão violenta medida fora o aumento de assaltos na região, supostamente atribuído aos moradores de rua (o velho argumento de criminalização da pobreza.).
O curioso é que o tema parece ter voltado novamente à baila esta semana com as matérias publicadas na quarta-feira, dia 10, no caderno Cotidiano da Folha de S. Paulo, (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1001200717.htm)e,no dia seguinte, no Estadão (http://www.estadao.com.br/ultimas/cidades/noticias/2007/jan/11/227.htm), ambas sobre as obras de reforma que a prefeitura está fazendo na Praça da Sé, parte das quais será inaugurada no próximo dia 25, aniversário da cidade. Os jornais falam na construção de canteiros antibanho, que impedirão o acesso dos mendigos aos espelhos d’água ali existentes, bem como na troca dos bancos, em que era possível se deitar, por apoios glúteos, nos quais só se pode encostar, mas não dormir.
Se a hostilidade contra os pobres não é nova (“Assomons les pauvres”, já dizia Baudelaire), a criação de dispositivos urbanísticos em que ela atualmente se encarna talvez mereça atenção mais detida de nossa parte. Sob as marquises, canos com orifícios que espirram água em intervalos regulares; estruturas pontiagudas ou declives calculados para impedir o sono nos desvãos; pavimentos irregulares e ásperos... são muitas, enfim, as artimanhas de que se vale uma certa arquitetura para negar abrigo ao miserável, ao estrangeiro, ao desgarrado.
No entanto, o dado novo talvez se prenda ao fato de tais dispositivos antimendigo não serem mais “acionados” apenas por comerciantes ou por moradores de condomínios de elite, mas pelos próprios poderes públicos, que já não se dão nem sequer ao trabalho de sustentar um discurso hipócrita em favor dos desafortunados (“a hipocrisia às vezes é o ponto mais próximo da virtude a que se pode chegar”, adverte-me meu companheiro). Como as políticas higienistas vão ganhando terreno entre nós, chegamos realmente ao disparate de reivindicar que as pessoas não sejam expulsas do mais inóspito dos abrigos: o olho da rua.
Claro que a idéia não é manter essas pessoas na rua – o que fere de modo incontestável seu sentido de dignidade – porém, diante de iniciativas como as referidas, cuja preocupação não é a de dar um lugar mais digno a essas pessoas, mas simplesmente “limpar a rua”, parece legítimo defender de modo intransigente a bandeira da hospitalidade. Há um poema no meu livro Novo endereço (“Noite”), que trata justamente disso, da necessidade de abrir “o olho da rua” aos “ciscos” que garantem à metrópole o justo cumprimento de sua mais profunda vocação: o convívio entre estranhos, meus semelhantes e concidadãos.

Noite

adormecido ao léu
na lomba da floresta
cedendo sob o céu
à tentação funesta

a cama na calçada
limite da sarjeta
e a testa hipotecada
nas fronhas do capeta

embora haja vassoura
não é doido varrido
mas teme quanto agoura

seu sono dividido

no seco olho da rua
é cisco e não se move

quem passa dá-lhe a pua
ou torce a ver se chove


[Foto de Mario Rui Feliciani, ponto de partida do poema “Noite”. ]
Natal na rampa

Comecei a falar das circunstâncias em que conheci seu Severino e fui tomado pela problemática das calçadas que, tradicionalmente, na metrópole moderna, sempre foram um lugar de encontro entre diferentes, sumidouro veloz onde o poeta havia perdido a aura do poeta e que, no entanto, vêm sendo “reauratizadas” no pior sentido (ao menos ao julgar pelo que vem acontecendo em São Paulo) pelo consórcio entre especulação imobiliária e políticas públicas socialmente segregadoras, dedicadas à expulsão do “refugo humano”; para lembrar a expressão cunhada por Zygmunt Bauman.
Esse meu parente desvio, contudo, não tem caráter digressivo, pois ajuda a compreender melhor tanto o meu envolvimento com os moradores do Prestes Maia como algumas das preocupações que orientam hoje meu trabalho poético.
Pois bem, falava eu da manifestação contra a rampa antimendigo, ocorrida em 17 de dezembro de 2005. Por ocorrer às vésperas do natal, a ação recebeu o nome de “Natal na rampa” e reuniu artistas plásticos, performers, videomakers, escritores, jornalistas, arquitetos, entre outras pessoas. Além do Severino e da Yili, mencionados anteriormente, estiveram também presentes o padre Júlio Lancelotti, e uma série de amigos como Viviana Bosi, José Moura Gonçalves Filho, Priscila Figueiredo, Luiz Repa, Tércio Redondo, Elaine Armênio, Bruno Zeni, Ricardo Lísias e Pádua Fernandes, todos se manifestando pacificamente sob o olhar da Guarda Civil Metropolitana. Eu, Pádua, Priscila e outros confeccionamos cartazes com frases como “É pau, é Serra/ é o fim do caminho”; “Era uma casa /muito engraçada/ não tinha teto/ não tinha nada”; Lísias escreveu um fragmento de prosa sobre um homem que mora debaixo do tapete, que ele mesmo mandou imprimir e colar nas imediações da rampa no sistema de lambe-lambe. Havia também um ator vestido de Papai Noel, com a máscara do Serra, promovendo uma ceia simbólica em bananas eram distribuídas a um morador de rua. A ação toda, que se estendeu por pouco mais de duas horas, reuniu cerca de 30 pessoas, mas não deteve os operários incumbidos de cimentar o vão da rampa. No entanto, serviu para me pôr em contato com pessoas e grupos afinados com o projeto de uma cidade mais justa, entre as quais seu Severino.
[Natal na rampa antimendigo, 17/dez/2005. Foto: Fabio Weintraub]


Um abrigo entre os livros

Anotei o telefone de Severino para combinar uma visita à Biblioteca que ele ajudara a organizar no Prestes Maia. Veio o fim do ano, viajei ao Rio e a Buenos Aires, voltei ao trabalho e, em meio às atribulações cotidianas, acabei esquecendo o projeto da visita...
Em 1 de fevereiro de 2006, no entanto, a Biblioteca Comunitária Prestes Maia rendeu uma matéria de capa da Folha de S. Paulo, assinada pela repórter Afra Balazina. Ela entrevistou seu Severino e outros moradores da ocupação – como o marreteiro Lamartine Brasiliano, leitor de Gilberto Freyre e Graciliano Ramos –, chamando a atenção para a defesa do direito à leitura, em condições as mais adversas. Na época, os moradores da Ocupação enfrentavam a ameaça de despejo iminente devido à vitória dos proprietários daquele imóvel (desocupado há mais de uma década) em uma ação de reintegração de posse.
Fiquei muito impressionado com a matéria. Em um país onde tudo conspira para aumentar a distância entre os pobres e a cultura letrada, como não ser tocado pelo esforço desses homens que, sem possuir a garantia de um teto, procuram um abrigo entre os livros?
Imediatamente fui atrás do telefone que eu havia anotado a fim de marcar uma ida ao Prestes Maia. De quebra, lembrei também da conversa que eu havia tido, dias antes, com uma amiga, a Dolores Prades, que estava à procura de um nome para homenagear na entrega do II Prêmio Barco a Vapor, promovido pela Edições SM, onde trabalho atualmente. Tal prêmio, concedido a obras inéditas no campo da literatura infanto-juvenil, costuma homenagear todos os anos figuras importantes no campo da criação literária ou do fomento à leitura. Propus então a Dolores que fosse comigo ao encontro com seu Severino a fim de conhecer o trabalho por ele desenvolvido. Ela, que também havia lido a matéria na Folha, aceitou mais do que depressa.
Assim, lá fomos nós, em uma tarde de domingo ao Prestes Maia. Conversamos longamente com seu Severino e Roberta e pude então conhecer uma experiência urbana inspiradora, exemplo de resistência concreta às práticas de exclusão social a que me referi no início desta entrevista. Cerca de 468 famílias, mais de 1500 pessoas morando em um único prédio, numa situação de ilegalidade que, paradoxalmente, faz valer o direito à moradia, previsto no artigo 6.o da Constituição Federal.
Desde aquela tarde passei a freqüentar o Prestes Maia, buscando colaborar de alguma maneira com a luta daquelas pessoas – por moradia, por cultura, por dignidade. Vingou a idéia de uma homenagem à Biblioteca, que acabou se materializando sob a forma de um vídeo intitulado "Um abrigo entre os livros" (produzido pela Edições SM, com roteiro da Dolores e direção da atriz e videomaker Luaa Gabanini), do qual participei como entrevistador e redator e que foi exibido em 28 de agosto, no auditório do Itaú Cultural, durante a cerimônia de entrega do prêmio Barco a Vapor.
Além disso, junto com Pádua Fernandes, meu companheiro de todas as horas, organizei um ciclo de palestras denominado “O direito à cidade”, convidando pessoas de diferentes áreas – psicologia, direito, literatura, geografia, arquitetura, sociologia ambiental – para pensar, a partir de diferentes perspectivas, sobre as possibilidades de um uso mais democrático do espaço urbano.
Esse ciclo – do qual participaram nomes como o do professor Aziz Ab’Saber e a psicanalista Maria Rita Kehl – ocorreu em duas etapas, nos meses de abril e novembro, e integrou uma série de atividades desenvolvidas no prédio durante o ano passado (cineclube, exposições, oficinas de arte, de alfabetização, de reciclagem) com o objetivo de chamar a atenção da imprensa e da opinião pública para a situação do prédio – que, apesar dos esforços dos moradores, continua sendo de grande precariedade – e de caracterizá-lo não somente como um local importante não apenas no que concerne ao problema da moradia, mas também como um equipamento cultural da cidade de São Paulo.
Isso acabou gerando matérias em revistas e jornais (Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Carta Capital, Época), programas de televisão e até uma visita do escritor e bibliófilo José Mindlin à Biblioteca da Ocupação, conquanto não tenha alterado a situação legal dos moradores, que continuam ameaçados de despejo, apesar de uma suspensão provisória da ação de reintegração (entre abril e agosto do ano passado) por um agravo de instrumento interposto pelos advogados do MSTC e de promessas feitas durante o período eleitoral, quando alguns políticos acenaram com uma possível verba federal para desapropriação do imóvel, futuramente transformado em moradia popular.
Para este ano, estamos planejando novas ações. A Edições SM deve contratar nos próximos meses uma bibliotecária para organizar (indexar, catalogar) o acervo bibliográfico (que hoje conta com mais de 10.000 títulos). De minha parte, pretendo realizar, com Dolores e Luaa, um novo documentário sobre a biblioteca, aproveitando parte do material não utilizado em “Um abrigo entre os livros”.
[foto: Fabio Weintraub (Severino Manoel de Souza organiza o acervo da Biblioteca Prestes Maia)]

A relação mais intensa e próxima com a questão urbana dos sem-teto
influenciou sua produção como poeta?

Poética do exílio

É sempre muito difícil tratar das “influências”, pois há muitas variáveis que entram simultaneamente no cadinho do poeta, muitas vezes modo inconsciente: leituras, modelos de desempenho formal, desejos infantis, valores ideológicos etc.
De qualquer forma, no que se refere ao interesse poético pelo espaço urbano e pelos conflitos que aí têm lugar, creio que habita meus versos já há algum tempo; pelo menos, desde Novo endereço, meu último livro, publicado em 2002. Nele, o tema do exílio emerge como questão central, presente desde a epígrafe de Simone Weil (“Muitos não sentem com toda a alma a diferença total que existe entre o aniquilamento de uma cidade e o exílio irremediável fora dela”) e retomada na hipógrafe de Martin Buber (“Todos os dias deve o homem sair do Egito”).
O exílio comparece de diferentes formas no livro, seja na figura recorrente dos mendigos, nos poemas sobre enfermidade (ver o poema inicial “Mãe”, que trata de uma internação psiquiátrica), desemprego e violência. Na maioria dos poemas, contudo, o exílio é mais social que geográfico, pois se refere à perda do direito à cidade (que pode ocorrer em qualquer lugar, inclusive na terra natal) decorrente de situações de empobrecimento e doença (loucura, alcoolismo etc.). Claro que há também poemas menos sombrios, que fogem um pouco dessa chave temática (como o poema “Contrabando”, dedicado ao Sérgio, seu marido, que foi escrito na época em que você estava grávida do Ravi, lembra?). Porém, pensando bem, mesmo nesse poema, que representa a concepção como contravenção, a idéia do exílio também está presente – como se o nascimento de um filho impusesse aos pais um certo deslocamento, a chegada a uma terra desconhecida...

Contrabando
para Sérgio Gallo

Há ciência em dividir cama
com uma mulher grávida

Nos abraçamos de lado
ela me rouba costelas
e vira um barco
que eu reboco com medo

Como saber a latitude exata
de quem navega e dorme,
dar nome à suave tripulação?

A alfândega cobra multa
por excesso de peso
Os papéis estão em ordem
Meu contrabando é inocente

Num porto bem próximo
alguém agita um lenço
em nossa direção

De qualquer maneira, voltando à sua pergunta, penso que seria mais correto dizer que foi antes a poesia que “influenciou”, se é que se pode falar assim, a minha ida a Prestes Maia e o contato com pessoas e grupos ligados à luta por moradia em São Paulo.

[imagem: A francesa Simone Weil (1909-1943), filósofa da atenção]
Você está escrevendo algo, tem projetos literários no momento? Poderia nos enviar algum poema inédito?

Paisagens morais

Sim, estou trabalhando em um livro novo, a que dei o título provisório de Paisagens morais. Fui contemplado com uma bolsa de estímulo à criação literária concedida pela Secretaria de Estado da Cultura e, se tudo der certo e as musas consentirem, devo concluir o livro até o final deste ano.
Ainda estou muito no começo, com pouca coisa escrita (tudo pode mudar em função dos poemas vindouros), mas a idéia é seguir pesquisando sobre as diversas modalidades de desenraizamento contemporâneo. Para tanto pensei concentrar a atenção no impacto subjetivo associado às novas formas de organização do espaço urbano, donde a idéia de paisagem moral.
Na verdade, acho que deparei esse “conceito” pela primeira vez em uma carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Nessa carta, escrita em 18 de janeiro de 1933, Mário lamenta o abandono do endereço em que Bandeira morou vários anos, na Rua do Curvelo, número 51, não apenas porque a mudança punha a nu a miséria em que o companheiro vivia (fora obrigado a se mudar por dificuldades com o aluguel), mas também pelo que tal mudança representava em termos morais. Diz ele: “o Curvelo 51 fazia tanto parte do você meu que a mudança me fez sofrer realmente. Sofri em mim e sofri por mim, com esse você perdido nos ares, feito um desses voadores de Cícero Dias, cujo sentido a gente consegue aferrar totalmente. Você é suficientemente elevado pra não zangar com o que vou dizer, mas meio que você ficou sem caráter. Não falo bem sem caráter moral, falo alargando, totalizando a palavra, isto é, compreendendo também o caráter moral naquilo que é a sua agudeza periférica intransigente. Você ficou diminuído muito, empobrecido de todos os valores. Você se desencantou”.[1]
O traçado das ruas de um bairro, largura das calçadas, a altura das janelas, sons que atravessam o espaço (músicas, pregões, gritos), a quantidade de luz filtrada pelos edifícios... todas essas coisas compõem um caráter, definem um ethos.
Assim, a idéia de “paisagem moral” parece-me especialmente oportuna para lidar com a figuração poética da cidade, termo que não deve ser entendido simplesmente como cenário, aglomerado de pessoas, carros e edifícios. O que me parece mais essencial na experiência urbana atual é um novo padrão de sociabilidade ligado à idéia de conflito, o que também se relaciona à idéia de perda dos direitos civis a que estão condenados aqueles que ficaram na calçada.
Como já deu para perceber, creio que seguirei na trilha aberta por Novo endereço. A novidade prende-se ao fato de que, para elaboração dos poemas, pretendo fazer uso de textos de natureza heteróclita, como entrevistas com moradores de rua da cidade de São Paulo, que redundarão, muito provavelmente, em estilizações desses discursos à margem.
Mas não devo adiantar muito mais do que estou fazendo, porque falar demais sobre o que ainda se encontra em gestação dissipa a energia necessária à consecução dos projetos. Para encerrar então, atendendo ao seu pedido, envio-lhe um poema inédito.
[1] In Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Organização, introdução e notas: Marcos Antônio de Moraes. São Paulo: Edusp/ IEB, 2000, p. 548. Grifo meu.
Cabeça

No hospital
ficou só 24 horas
dez dias com a cabeça inchada
sem tirar os pontos

A estereotaxia consiste
em prender com parafusos
um halo metálico
ao crânio do paciente
a fim de perfurá-lo
com uma broca 2 mm

Quase não come
aceita água
Depois voltou a ter
os tais acessos
quebrou a porta do quarto
e o vaso sanitário

Introduz-se então
a ponta incandescente
de um estilete

para cauterizar a área

cortar as linhas da agressividade

A família o mantém amarrado
preso por cordas
a um gancho na parede

Queimam-se áreas
muito menores
que as outrora lesadas
na lobotomia

Fica nu
a maior parte do tempo
para não rasgar a roupa
engolir as tiras

Apesar de condenada
em várias partes do mundo
o Brasil melhora a técnica
e a exporta para a Índia


Como raiz
a cicatriz se alastra

Fabio Weintraub

[imagem: A extração da pedra da cabeça (ou A cura da loucura), de Hyeronimus Bosch (c.1450-1516).]

quarta-feira, janeiro 03, 2007