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sábado, dezembro 08, 2007

Uma resenha de Lígia Dabul

E agora voltamos as publicações semanais. Hoje, como é costume após o lançamento, traremos uma outra faceta de uma poeta publicada na edição impressa do jornal. Temos o prazer de publicar uma resenha escrita pela poeta carioca Lígia Dabul para o livro tempo inteiro (Bem-Te-Vi, 2007) da também poeta Paula Padilha.


FINA TENSÃO NA POESIA
Lígia Dabul


O livro tempo inteiro é mais que a reunião de trinta belos poemas da poeta carioca Paula Padilha. Bem mais também que o desenvolvimento do tema que o título anuncia e vem explicitado e sugerido ao longo do livro todo. tempo inteiro é na verdade tom, tensão discreta e por isso eloqüente, que acompanha a leitura de cada poema e além: no desejo da volta ao texto, no reconhecimento do vestígio que fica dos seus versos. A poeta parece indicar essa permanência:

uma harmonia paralela
organiza o ritmo do passo
em busca do atalho fresco

primeira vibração
entre murmúrio e desejo

Paula Padilha não cede nunca aos feitos fáceis das palavras. Sua poesia conduz fluxos intensos de idéias, impressões, experiências, mas chega a resultados supostamente simples. O prazer do contato com seus poemas deve-se muito a essa aparência de transparência, à força sustentada por enorme leveza, produto do trabalho da poeta que tem tanto a dizer:

entre a primeira palavra
e a insubstituível
uma avenida intermediária

rascunho impermanente
por onde escolho enveredar
meu desalinho

olhar descalço (Rio de Janeiro, Editora da Palavra, 2001), seu primeiro livro, já oferecia leitura prazerosa de poemas sucintos, exatos, e elaborados com especial delicadeza. O leitor agora, em “fio”, “dentro” e “vidro”, as partes de tempo inteiro, vai reencontrar essa contundência escrita com a ponta mais que fina:

jamais pisei tão firme no exíguo
fio de prata estendido
sobre a natureza



Lígia Dabul nasceu e vive no Rio de Janeiro. Tem poemas publicados em revistas e jornais literários do Brasil e outros países, assim como o livro Som (Bem-Te-Vi, 2005). É antropóloga, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense. Faz pesquisas em Antropologia da Arte - publicou diversos trabalhos sobre o tema, dentre eles o livro Um percurso da pintura (EdUFF, 2001).

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Saindo do casulo, entrando n'O Casulo


O lançamento da edição 7 d'O Casulo foi, sem dúvida, muito especial. A Casas das Rosas, que encerra o ano de 2007 com grandes novidades, abriu suas portas e recebeu alunos, pais, parentes, amigos e interessados em poesia em geral que esperavam atentos a premiação do consurso Saia do Casulo. Os jovens poetas, alunos de Ensino Médio, subiram ao palco e recitaram seus versos à interessada platéia. Agora, com imenso prazer, publicaremos aqui alguns poemas que, por falta de espaço, ficaram de fora do jornal. Parabéns a todos os alunos que, desde já, arriscam-se na produção literária.

Poema sem Nada

Este é um poema
sem cheiro, cor ou sabor.
Este é um poema
surrado, esfolado, abatido e cansado.
Este é um poema
que o cérebro mastigou,
não engoliu, e depois
pelas mãos escarrou.

......................................(Lucas Melhado)

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Coletivo Individual


Em seus olhos entreabertos, apenas Capitu encontrava espaço. Em seu coração já cansado de amar, apenas ela preenchia toda a vastidão de seus sentimentos. Não, não a sublime personagem machadiana, mas ela, que fazia a garganta do pobre menino tímido sentado no último banco daquele primeiro ônibus, querer saltar e voar livre como uma sílfide.
O cabelo bagunçado e as costeletas sobressalentes não eram mais notados que seu jeito comedido e pensativo, nem mais revolucionários que a confusa mistura latente em seu peito. Em que estaria pensando? Nela. O ônibus andava, o mundo girava, as casas passavam, as crianças brincavam e tudo o que aquela figura ímpar sentia era o perfume dela.
A mochila recostada aos seus pés recebeu com grande satisfação o imortal Machado, que se juntou a Neruda e Alencar. O que faziam eles ali? Na certa, discutiam o verdadeiro amor. Para um, o romance da índia perfeita, com seu ar pueril, retratado na poesia de outro. Para o terceiro, a inconstância dos corações humanos, ora apaixonados, ora adúlteros. Quem saberá o que estava sendo discutido dentro daquela bolsa, dentro daquele ônibus que passava por ruas ainda clareadas artificialmente? Mas de uma coisa tenho certeza. Se o rapaz, que agora ouvia serenamente os conselhos de Chico Buarque, participasse de tão magnífica palestra, certamente argumentaria que o verdadeiro amor não era aquilo que discutiam, mas sim, ela. Entretanto, ele não fora chamado para a discussão. Ficou de fora, sem nem observar aquelas autoridades que não encontravam acordo. Mas é claro que não encontravam! Apenas ele tinha a resposta.
A cabeça recostada não parava de se movimentar, mesmo parada. Em um instante, estava na Grande Muralha, de onde fugia para Delfos em menos de um segundo. Uma infinidade de lugares, embebidos em Chopin, com um único intuito comum: parar de pensar naquela garota. Mas era impossível. Creio que seja por isso que os países e as nações, que negros e brancos, que tribos e civilizações, que isqueiros e fósforos nunca se juntem. Para que, afinal? Ele não parará de flutuar naqueles olhos castanhos, mesmo.
E realmente não parava. Todo seu corpo transmitia mensagens vivas daquela doce paixão. Um coração discreto no bolso esquerdo da calça desbotada, um colar que os unia, cartas de amor secretamente escondidas na carteira que ela o presenteara. Ele a transpirava. Por um momento, pensei vê-la de olhos fechados no banco do ônibus que já parara. Mas não, fora, apenas, a eterna confusão de identidade de dois seres que se amam.
Com vacilantes passos, límpido semblante e algumas rimas baratas repetidamente repassadas, o menino caminhava pelas agitadas ruas de São Paulo. Os olhares curiosos, que tentavam em vão fuzilar-lhe a mente, contentavam-se em apenas questionar se o rapaz esquisito tinha algum destino. Esquisito por não ter destino? Ou por estar apaixonado? A selva de pedra é impiedosa. Basta surgir uma flor no meio do asfalto, que tão logo surge o escândalo. Aproveitem, a última rosa desfolha-se! Sabe... isso me lembra algum poeta.
Mas, no semáforo, qualquer minucioso observador encontraria o destino questionado. A luz vermelha impedia-o de passar. Os quinze segundos pareciam horas, dias, anos...Com cautela, a voz de Renato, aos poucos, abaixava. O silêncio mudo, do cantor e não do ouvinte, encontrava a sepultura na mochila. Enfim, o ponteiro dos segundos conseguira desvencilhar-se daquela paralisia, mas apenas metaforicamente, já que o garoto, que agora atravessava a rua, não usava relógio.
E muitos exclamarão: “Que destino! O outro lado da rua!” Mais uma vez, descuidado leitor, peço sua atenção. Não era, apenas, o outro lado da rua. Era o outro lado do arco íris, morada do precioso pote de ouro - ela.
Abraçaram-se fortemente e, nos ouvidos da garota, aqueles pobres versos foram declamados nervosamente. Dentro da mala, Neruda estremeceu ao ver que nem seus próprios poemas conseguiram emocionar um coração jovial, como aquelas pífias rimas conseguiram. Porém, como por recompensa, o garoto retirou-o de onde estava recostado e deu-o à menina, cujos olhos brilhavam mais do que nunca.
O curso da vida continuava. O casal à direita, com o amor em seu encalço e de mãos dadas, a cidade para cima, a vida para baixo e este humilde narrador, quem sabe, para outro ônibus desta metrópole.

(Bruno Lopez Molinero Gomes)

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Fogo Amigo

Certo dia, em um de meus passeios pela cidade, me vi em meio a um fogo cruzado.
Todos, sem exceção, possuíam armas.Desde a pequena menina que não se contentava com apenas um presente de aniversário ao mendigo feliz da vida por não precisar buscar um refúgio quente, já que era um daqueles dias de inverno em que o sol teima em aparecer e deixar o clima mais ameno.
Custei a entender tudo aquilo.Por sorte, estava bem protegido por detrás de um muro(que àquela altura, já devia estar cheio de buracos).
Vi um senhor, já muito debilitado, subir e descer a rua em que eu estava, com sua arma em punho.Ele estava ferido no ombro.Havia sido atingido pouco antes, por um garoto.
Ao me ver ali agachado, se aproximou e disse:
- Porquê é que se escondes?
- Me escondo porque tenho medo, respondi.
- Medo de que oras?!
- Medo de ser atingido por um deles!
Após ter dito isso o velho homem me respondeu com um muxoxo e acrescentou:
- Todos eles não passam de pessoas com armas nas mãos.
E foi embora logo em seguida.
Logo que o velho virou a esquina, meu esconderijo foi posto abaixo quando um carteiro me viu e disparou três vezes seguidas.Fiquei ali, estendido junto ao muro, sem o menor sinal de vida.Mas não estava inconsciente.
Só então pude enxergar tudo com clareza

(Pedro Rodrigues)

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Valor

Tudo começara quando o menino achara na rua uma raposa de pêlos ruivos, quase que ardendo em chamas. Na ocasião, parecera uma boa idéia levar o bicho para casa até que o dono aparecesse ou algo do tipo. Não era um filhote, mas também não se podia dizer que era um adulto, pensaram o garoto e o animal na ocasião.
Ocorreram as coisas relativamente bem, até que a mãe do garoto perguntou por que ele ficava tanto tempo trancado em seu quarto, ao que ele respondeu, supondo-se muito corajoso, Estou escondendo uma raposa que achei na rua, e a mãe zangou-se com o feito do menino, onde já se viu esconder uma raposa? O jovem, decepcionado com a mãe, foi ao quarto e bateu a porta.
Andam ambos juntos, menino e raposa, pela rua afora. Estão procurando, talvez, o sentido daquilo tudo, as verdades ocultas na vida ou, o que talvez seja mais provável, um lugar para o pobre bicho selvagem. Selvagem? Mas ele se comportou direitinho todo esse tempo! Qual o problema em continuarem as coisas como estão?
Apenas uma raposa, droga!
Sentam-se ambos, já cansados, numa calçada qualquer. O menino afaga a cabeça do pobre canídeo, que fora ainda mais duramente abandonado do que ele, esperando um milagre ou algo congênere.
Latidos!
A raposa ergue as orelhas, sente todo os seus músculos ferverem e, num só pique, vence a distância de dois quarteirões e vira na r. Corta Azar num frenesi quase religioso, como se os latidos remetessem a terríveis memórias das caçadas infernais de outrora. O menino, desesperado por ver-se livre de seu problema, chora copiosamente.
Entretanto, quando chegar em casa, sua mãe elogiará sua obediência e capacidade de se livrar das coisas inúteis

***

Breve


Remexia o lixo com o focinho, lançava os restos de um lado para o outro em busca de humanidade, esse dejeto sócio-industrial da sociedade. Havia, é verdade, alimento suficiente para seu estômago, mas nada que satisfizesse seu resquício de racionalidade.

Rebaixada à condição de simples animal, livrara-se de todas as vontades, desejos, sonhos, sublimes aspirações da juventude, e tudo que ainda restava era a pálida certeza de que não havia por que dexistir.

Deitada sobre a própria comida, a cabeça livre de nostalgia ou doces lembranças, a raposa apenas deslizava pelo ser e estar.

Dois anos depois, apagar-se-ia como se nunca houvesse.

(Ricardo Koiti Abreu Miyadam)

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Um café



— Um café, um café! — gritou a senhorinha que ia entrando naquele barzinho de esquina. — Um café, um café!...

Ela entrou e foi se chegando numa mesa de canto, espremendo-se toda, colocando a bolsa de tricô no banco único, ajeitando o corpo gordo naquele pequeno espaço.

— Pois não. O que a senhora deseja? — perguntou o jovem garçom.

— Moço, um café, faz favor.

— Sim.

E lá se foi ele. A senhorinha esperava, olhando ao redor. O bar estava meio lotado, não muito cheio, mas um cheio significativo para àquela hora daquela tarde de garoinha. Devem ter entrado para se abrigar. Para não se adoentarem. Pingos finos que não param. Frio. Brrr!

O garçom voltou com a bandeja. Uma xícara branca com café, açúcar e adoçante.

— Tá quente?

— É claro. Servimos bem nossos clientes, senhora.

Ele pousou a xícara na mesa da velhinha e foi logo empurrando o adoçante. Impondo.

— O que é isso? Quero açúcar. Sou velha, mas ainda posso aproveitar.

Nos lábios do garçom se esboçou uma risada — uma risadinha com o canto da boca, aquela risadinha sarcástica —, e uma colher cheia de açúcar caiu dentro da xícara.

— Mais, mais — disse a velhinha. — Como te disse, ainda posso aproveitar.

— Sim, senhora...

Ele pôs mais algumas colherinhas, mexeu, e se foi. A velha olhou bem a xícara de café, conferiu para ver se estava mesmo quente, olhou bem para o garçom. É, ele é bem bonito. Tem seus dotes. Um bumbum bem gostoso, pensou a velha. Um bumbum bem gostoso. Seria ele então? (Mordidinha nos dedos.) Pode ser. Será ele? (Mordida violenta.) Sim, com certeza. Huumm.

Ela pegou a xícara e preparou-se para beber. Aquele líquido doce, ansiado há tanto tempo — pois o médico dissera para ela parar com o café se quisesse continuar mais alguns anos de vida —, desceu com um prazer imenso pela garganta. De princípio deu-lhe até certa ânsia. Líquido doce e novo. Não, novo nem tanto, mas era de uma renovidade instantânea para a velhinha, era aquela velha novidade se refazendo por dentro. Um arroto subiu. Seria a alergia? (E tinha também o diabete.) Se for não tem problema, não duro muito mesmo. Glub, glub, glub, fazia a velhinha. Glub, glub, glub, o canto da boca se sujava. Glub, glub, glub, ela limpava com a manga da blusa os vestígios de café.

— Ô garçom! — gritou novamente.

Ele chegou.

— Sim?!

A velha corou. Virou o pescoço para o lado, riu baixinho.

— Posso te perguntar uma coisa?

— Claro.

Ela não teve coragem.

— Nada não. Me traga mais café, sim?

— Tudo bem. Açúcar?

— Sim, açúcar;

Ele voltou rápido.

— Aqui está.

— Muito obrigado.

Ele se foi.

A velha bebeu com tanta voracidade a segunda xícara de café que nem dera tempo de o garçom cruzar a mesa ao lado da dela. Ela o chamou pela terceira vez.

— Ôôôô garçom! — grito com uma voz estridente e corajosa. Grito dado com uma voz nova.

— Siiiim! — retornou ele.

— Volte aqui.

Ele voltou.

— O que quer desta vez?

— Posso te perguntar realmente uma coisa?

Ele se irritou.

— Pode, pode. Pergunta logo que ainda tenho que atender os outros clientes.

A velha pegou a bolsa, a ajeitou no ombro, e soltou:

— Está certo. É... você, assim, não quer se deitar comigo?

— O quê? — espantou-se o garçom.

A velha baixou o tom de voz, quase em sussurro. Mas no ambiente nem era necessário tanto, ninguém lhes dava atenção. Talvez seria sensualidade?

— Isso mesmo que você ouviu. E eu ainda pago bem. Aceita?

— Oh!, pelo amor de Deus, minha senhora — disse ele, exaltado.

O bar inteiro então se virou para o garçom. Espantadas, as pessoas pensaram que o homem maltratava a pobre senhorinha.

— Não se preocupe, pessoal. Essa velha maluca já está de saída.

— Posso te ajudar, senhora? — disse um homem forte e barbudo que estava próximo, que se levantou batendo estupidamente na mesa.

— Não, não está acontecendo nada de mais, meu filho.

Então ela voltou a falar com o garçom.

— Eu pago bem, entendeu? Aceita?

— Suma daqui! Pervertida. Não precisa nem de pagar o que bebeu.

O garçom a levantou pelo braço — quantas sobras de pele — e a arrastou até a porta de vidro. As pessoas que lá estavam assustaram-se com a cena, criando de momento certa piedade pela senhorinha.

— E não volte mais aqui! Guardei tua cara enrugada — gritou o garçom, lançando-a com violência para fora do bar.

Pela porta ele ainda a observou cruzar a rua, meio cambaleante (pelo diabete ou pelo ato de brutalidade?), ajeitando a bolsa no ombro. Ele viu-a cruzar a rua cinzenta, naquela garoinha fria, subir o passeio e entrar no bar da outra esquina. O garçom deteve-se aos clientes postos às mesas, que já tinham se esquecido da senhorinha. Mas um som ao longe — e deu-se para ouvir muito bem —, mesmo estando lá, atento, o garçom teve a precisão de escutar, em tom de desejo, a voz arrastada da velha que entrava pela porta do outro bar, gritando:

— Um café! Um café! Moço, por favor, um café! Um café!...

(Leonardo Fernandes Paiva)