Para o maior terrorista poético do Brasil
Ari Almeida, você é mais importante do que imagina. Se você soubesse o quanto as conversas dos artistas plásticos e dos poetas chegam sempre no mesmo impasse... Uma palavra freqüente é “crise”, pois é isso que está tomando conta de todas as expressões artísticas. A coisa é séria, os artistas estão todos perdidos, parecem mais cobras mordendo o próprio rabo. Existe, entre os poetas e artistas de hoje, uma tentativa de fundir arte e vida, de dissolver a arte no cotidiano, de fazer com que o dia-a-dia se torne mais poético. A intenção é empolgante: se o próprio correr dos dias fosse tão rico e intenso quanto um poema épico ou quanto a pintura mais bonita, já não precisaríamos nem de museus nem de coletâneas de autores. Mas a verdade é que essa tentativa fracassou, o artista continua fazendo o papel de uma instituição, de uma autoridade que decide o que é arte e o que não é. Ou seja, se precisamos do “Artista” como uma espécie de juiz, a arte continua separada da vida.
Eis que de repente, Ari, você entra na discussão. Você mesmo, jamais um artista, antes um guerrilheiro da contracultura. Nem sequer assina com o nome verdadeiro (caramba, quem é Ari Almeida?). Não pede licença para invadir a casa dos outros e espalhar suas idéias onde quer que esteja. Entende como ninguém o quanto a verdadeira história é a história do desejo. Percebe que num mundo apático como o nosso, a consciência só é despertada diante de verdadeiros crimes. E portanto oferece o terrorismo poético como alternativa, em lugar da crueldade do terrorismo real. Palavras e imagens não bastam para mudar o mundo, daí nasce teu amor pela ação. Se alguém quiser mesmo fundir vida e arte no mesmo gesto, é preciso deixar de lado toda a história da arte. Você não precisa do status de artista para ser arteiro: de outra maneira, só teria histórias frustradas para nos contar.
E o que não te falta é repertório, como você descreve no Manual Prático de Delinqüência Juvenil. Com os Delinqüentes, você ousou como um verdadeiro Lampião, com a diferença que trocou a carabina pelo estilingue. Se nós, poetas angustiados, declamamos poesia nos saraus, vocês os atiraram para dentro das casas, quebrando as vidraças e a apatia. Os muros também não foram poupados, fazendo as vezes de tela para pinturas e frases que são como disparos. Nem mesmo a sagrada televisão, a maior rival da cultura, ficou ilesa: Delinqüentes não precisam respeitar nem mesmo Rede Globo, invadem a programação e dão sua própria versão (na verdade, a subversão) do Jornal Nacional. Nas mãos de vocês, o que era um cínico out-door se torna uma queima de fogos, o que era enfeite de natal vira protesto contra o consumismo, e um técnico de geladeira merece tanto carinho quanto um grande artista ou um popstar.
Não pude deixar de notar que você tem suas mil contradições, que tento entender como efeito colateral de uma liberdade radical. Como você mesmo disse: “Hoje quem não está confuso ou está mal informado ou está sendo desonesto consigo mesmo”. Devo admitir que não é fácil te defender em público, não se fala de alguém tão polêmico impunemente. Claro que eu vejo uma grande beleza quando você conta que invadia casas para, em vez de roubar, presentear o morador com mensagens disruptivas ou com surpresas maravilhosas. É uma generosidade ampla, com a qual não estamos acostumados. Eu me pego sonhando com o que foi que sentiu a criança que ganhou um coelhinho vivo na páscoa, na calada da noite; ou a velha viúva que se deparou com uma horta inesperada em seu quintal; ou mesmo as madames que podem, talvez, “não terem entendido nada”, mas tiveram uma chance de questionar seu próprio marasmo. Não podemos esquecer, no entanto, que nem tudo que vocês fizeram pode ser imitado. São Paulo é mais perigosa que Curitiba: a polícia é mais intolerante e os traficantes estão por toda parte. Invadir casas por aqui não é recomendável. Além disso, algumas de suas subversões não me parecem boas saídas: uma catapulta de merda contra os carros novinhos da fábrica da Renault pode simbolizar uma vingança contra os ricos, mas quem limpa a sujeira depois é um homem do povo, vítima do sistema.
De qualquer maneira, em um mundo tão caótico como o nosso, acho importante ver o que tem a dizer quem busca converter todo o caos em algo positivo. Comoveu-me muito um comentário em seu blog de um professor, chamado Renato, que levou suas narrativas para a sala de aula e confessou que aprendeu contigo algo sobre união. Pode parecer desnorteador pensar que aprendemos algo tão sublime com alguém tão porra-louca, mas o perigo maior não está no seu livro nem no blog. Está na realidade em decadência, e você mesmo demonstra isso em sua prosa beatnik.
É difícil prever o que acontecerá com cada pessoa que ler o Manual, mas não duvido que ele possa até mesmo salvar vidas. É um livro que dá alternativas aos jovens mais inquietos: aqueles que se sentem sem rumo, que cedo ou tarde acabariam se perdendo, que se marginalizariam sem volta, que se desesperam por não entender porque não se adaptam. Nós precisamos desses inquietos, conscientes e em liberdade. São eles que nos dão a esperança de que algo possa mudar. Não sei se todos te compreenderão, Ari, mesmo porque você é um poço sem fundo de contradições. Ainda assim, não escondo a admiração pelo terrorista que, se nunca invadiu minha casa com seus disparos, invadiu minha mente com os relatos, e com isso mudou minha vida.
O Manual Prático de Delinqüência Juvenil tem publicação prevista para o fim deste ano, pela Editora Deriva, a um preço popular.
Mais informações: http://editoraderiva.multiply.com/
excambo@yahoo.com.br
Ivan Hegenberg é escritor e artista plástico. Em 2005 lançou A grande incógnita (contos) e em 2007 Será (romance). Tem textos publicados no site Cronópios e no blog L’enfant Le terrible: http://ivanhegenberg.blogspot.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário