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terça-feira, julho 22, 2008

partido alto


Andréa Catrópa

I


Acordei pensando na “má consciência” que parece, muitas vezes, atormentar o meio literário do qual participo, direta ou indiretamente. Ia acrescentar ao verbo acordar o advérbio inexplicavelmente, mas logo percebi a falsidade retórica desse uso. Provavelmente eu possa rastrear as causas dessa reflexão matinal, que me faz adiar o início de uma rotina e que provavelmente atrasará minhas tarefas programadas para serem feitas hoje. Acrescento aqui estes detalhes triviais, porque são bastante elucidativos da minha condição privilegiada: trabalho em casa, em uma situação precária por ser temporária, mas ainda sim privilegiada mesmo quando consideramos apenas o fator do tempo que a maioria das pessoas perde em ônibus e trens lotados para conseguir chegar ao trabalho. Poder acordar de pijama, pegar um café na cozinha, passar pela área de serviço e adentrar o quartinho que é meu ambiente profissional permite que, mesmo quando eu pegue no batente às 8 horas, eu possa me deitar tarde. Por isso ontem, cansada, e detestando telejornais (o mundo cão convertido em pílulas), achei que não seria grave adiar meu sono para me inteirar de um resumo das notícias do dia. Aliás, para ser mais exata, o anúncio de um assunto específico me atraía, o canto da musa para este texto desengonçado: a arrecadação de impostos no Brasil bate seu recorde neste primeiro semestre. Talvez a diminuição da sonegação estivesse por trás disso e fosse algo a ser comemorado. Como não sou economista, porém, penso como leiga. E dada a ficções, estranhamente construí um pequeno roteirinho em minha mente, que juntava as sucessivas ações desastradas da nossa polícia contra a população, intercaladas pelas imagens (close nos sorrisos e olhares altivos) de Cacciola e Dantas.

Desembaraçada da censura, minha imaginação se tornou mais ousada, e criou um curta-metragem onírico mais interessante: um casal de alcoólatras idosos, moradores de uma favela, polemizava com policiais após presenciarem uma troca de tiros em frente à sua casa. A mulher, depois, aparecia exageradamente maquiada, vestida como uma diva e dizendo coisas muito pertinentes sobre nossa realidade social. Para não cansar os leitores, concluo com a imagem mais marcante do sonho: a cabeça dessa mulher rodando em uma máquina de assar frangos.

Desperta e com meu superego ativo e burocrático, tento dar conta racionalmente do que talvez já esteja para o leitor por demais claro. E, voltando à questão literária, procuro tornar menos desencontradas minhas divagações. A idéia da identidade nacional sempre esteve por trás da nossa literatura. Ao considerarmos os esforços de Anchieta para tentar sistematizar e facilitar o conhecimento da língua dos indígenas ou ao atentarmos para as descrições produzidas pelos viajantes europeus durante a colonização perceberemos como o anseio de identificação e construção do que é o Brasil sempre esteve no âmago de nossas Letras. Mesmo quando existiu a recusa à especificidade do nacional, esta esteve negativamente marcada por esse traço, haja vista, por exemplo, a recepção crítica da poesia concreta que a considera como um esforço para a superação dessa especificidade rumo à internacionalização. Idéias como juventude, progresso, mestiçagem, superioridade, euforia talvez tenham desembocado em algumas concepções-chave sobre o país: a irreverência e o caráter tolerante de nosso povo, que têm como seu negativo a falta de seriedade e a passividade.

Esses conceitos, tanto negativos quanto positivos, marcam nossa produção artística e intelectual de tal forma que, mesmo quando não estamos tratando dessas questões, elas estão lá, esperando de tocaia para atacarem. E quando me referi à “má consciência” de nossos escritores e críticos (me restrinjo ao meio literário por falta de conhecimento de outras áreas), estava considerando isto: se a falta de seriedade e a passividade estão sempre espreitando como negativos de nossas qualidades, cabe à elite intelectual estar sempre alerta, tentando compensar essas falhas com o siso e a combatividade. Mas me parece que nossas investidas apaixonadas por uma literatura consciente e crítica de nossas mazelas sociais sejam, hoje, quixotescas: como não simpatizar verdadeiramente com elas, quando sabemos que os monstros atacados são, na verdade, moinhos de vento?

II

Retomo aqui a expressão elite intelectual para explicar o que para mim significa isso. Talvez eu esteja enganada, mas me parece que temos uma elite intelectual e uma elite financeira, sendo que nem sempre os membros de uma fazem parte da outra. Por algumas relações sociais inferidas por todos, a cultura e a erudição podem ajudar um cidadão a se virar economicamente, mesmo que mal. Da mesma forma, privilégios econômicos facilitam o acesso à educação e à cultura. Mas nem sempre, como é de se imaginar, as coisas acontecem assim. A nossa elite intelectual, principalmente na área das Letras, não encontra um mercado tão receptivo aos seus saberes específicos, do mesmo modo que a maior parte da nossa elite econômica não está tão interessada em se “ilustrar” (ao menos, em um sentido restrito e humanista, que não considera a lista das lojas mais descoladas da Rua Oscar Freire como “ilustração”).

Daí que sobre para muitos homens e mulheres de Letras o asilo estatal. Nossos saberes e práticas que não encontram boa acolhida mercadológica ou respaldo social mais amplo sobram como “fortalecimento da identidade nacional”, como resquício de algo que já esteve na ordem do dia em diversos momentos históricos (seja no Segundo Reinado, quando ganha força o Romantismo, ou na Semana de 22, quando se configuram literariamente questões como a urbanização e a tentativa de superação da dependência cultural). A democratização, que significou também o sucateamento do ensino, nos mostra suas conseqüências. Muitos jovens – mesmo de classes sociais privilegiadas – foram, na melhor das hipóteses, educados como mão-de-obra barata. Se um contingente enorme da população não sabe redigir coerentemente suas idéias e tampouco compreende textos simples, imagine os mais abstratos e intrincados. Isto não significa que essas pessoas não possam refletir sobre sua condição social e exercer sua cidadania, simplesmente aponta que o ponto de comunicação e expressão desses indivíduos não é literário. Sob essa ótica, os muitos monstros que figuram em nossa literatura são apenas as pás dos moinhos, e o “buraco é mais embaixo”.

Exercer o papel de poeta, contista ou crítico é apenas uma de nossas facetas como cidadãos, que não nos exime de atuarmos em outras esferas. E com isso, estou próxima de concluir minhas deambulações. A literatura brasileira, sendo parte fundamental de nossa formação cultural e estabelecendo elos entre diferentes pontos de vista, gerações, nacionalidades, credos e, afirmando assim, sua importância histórica, não se restringe a isso. Da mesma forma que como poeta ou pesquisadora brasileira talvez não seja eficaz canalizar todas as minhas preocupações políticas em meus textos. Sou uma dependente do Estado – minha educação formal em Literatura, o dinheiro que recebo atualmente – tudo vem da aplicação estatal de recursos em bolsas de pesquisa e prêmios de incentivo à cultura. Estou, portanto, de rabo preso? O dinheirinho que recebo é uma esmola benevolentemente concedida para eu me calar? E mesmo que não me cale, como agir de forma eficaz e adequada, para que a poeta e estudante seja também uma cidadã à altura de "sua literatura"?

III

Meu pessimismo não se confunde com niilismo. E por isso mesmo faço uma tentativa, a despeito de meu caráter, de ser pragmática. Ao lado do combate intelectual, nós que temos a pena (ou a caneta, ou o teclado), não precisamos pegar em armas. Está fora de moda e vai contra todos os estereótipos que rondam nosso sensível caráter. Para sermos mais efetivos em nossa luta, o primeiro passo é zelar por nosso dinheiro, vencer o preconceito “vapor barato” (é lógico que não precisamos de muito dinheiro, senão estaríamos atuando em outra área). Com tudo o que arrecada, o governo tem por obrigação investir em Educação e Cultura (e, portanto, nosso rabo está solto), e zelar decentemente pela Saúde e pela Justiça.

Sobre o rapaz recentemente vitimado pela polícia em um seqüestro relâmpago: qual o sentido de se perseguir e atirar num carro a esmo, se não é para “proteger o cidadão”? Se os policiais não estavam ali para proteger os cidadãos honestos (ou seja, pagadores de impostos), qual a sua função? Não seria melhor que eles ficassem sentados tomando água de coco, simplesmente observando a ação de criminosos? Talvez assim, o referido rapaz estivesse vivo, apesar de ter a conta bancária depauperada. Percebam que para desviar da demagogia, não preciso nem sair do meu lugar social e comentar os descalabros que a polícia (e, por conseqüência, o Estado) comete nos bairros de periferia. Em outra esfera (talvez num outro país dentro do próprio Brasil), encontramos as civilizadíssimas discussões sobre o tratamento adequado aos presos de colarinho branco. E que fique subentendido que minha intenção não é sugerir um nivelamento por baixo, mas justamente o contrário.

Talvez eu tenha sofrido algumas das conseqüências daquele empobrecimento do ensino a que me referi anteriormente, já que a coesão não é um ponto forte dos meus textos. Mas ficam aqui algumas linhas despontando de raciocínios mal cosidos, que talvez me assombrem desde a adolescência. As dúvidas sobre a pertinência de se trabalhar com literatura no Brasil, a sensação de impotência diante das indecências financeiras cometidas aqui e cinicamente noticiadas como coisa feia pero corriqueira, o complexo de inferioridade compensado pela mania de grandeza que provavelmente assola todo escritor e que nos faz acreditar no poder mágico de umas mal traçadas linhas. E a magia, dizem, é o último recurso do desesperado.

P.S. Se você chegou até o fim do texto, faz parte do grupo que defino como elite intelectual. Se não leu tudo porque achou chato, pobremente desenvolvido ou ficou simplesmente indignado com algumas de minhas afirmações, idem.

7 comentários:

Ivan Hegen disse...

Andréa, acho que suas angústias estão muito parecidas com as minhas... Também não me sinto satisfeito em ser um "representante da elite intelectual brasileira". A intelligentsia tem um raio de ação muito limitado.

Andréa Catrópa disse...

Sim, e o mais desesperador é que esse "raio de ação limitado" parece atacar todas os setores sociais. Pior do que isso, a estupefação parece ser a resposta-gêmea da nossa indignação.Mas constatar isso não adianta grande coisa, esse o nosso problema, né?

Anônimo disse...

Andréa,
Acho que é mesmo desesperador que a nossa "elite" mande os filhos para Disney, sonhe com Miami e não tenha culpa nenhuma de ser desinformada e pouco culta. Não podemos esperar nada da elite brasileira, mas também temos que combater sua ideologia da banalidade, estética e futilidade... É preciso falar mal deles e do seu projeto...O problema é que tudo hoje é regrado pelo consumo e pelo mercado e não há espaços na comunicação de massa para combater a ignorância, porque o jornalismo também virou jornalismo de mercado...

Andréa Catrópa disse...

Marlova, acho que a "aceleração" de nossa vida (incluindo aí a paradoxal dificuldade de deslocamento nas grandes cidades)gera uma sensação constante de stress e descontrole. No "tempo livre", parece que as pessoas estão tão exauridas que ficam como zumbis, fazendo atividades que visem simplesmente recarregar as baterias. Mas acho que no "escríticos" poderemos também desenvolver isso, não?
beijos

Renan Nuernberger disse...

Tentei ser conciso, mas desisti. Dos inúmeros pensamentos que tive, após a leitura de seu texto, sintetizo alguns: o poder político de nossos escritos são ainda mais limitados hoje que em décadas passadas, seja pela menor divulgação destes ou por certo preconceito, encontrado até mesmo no meio intelectual, contra tudo que esboce juízo crítico extra-literário (falo em literatura pelo mesmo motivo que você).

Concordo que nossa atuação não pode limitar-se ao papel (ou internet) mas como atuar numa sociedade sem perspectiva, satisfeita com suas pequenas milongas e desconfiada de todo e qualquer intelectual combativo (visto ora como anacrônico, ora como paspalho)? Não é de hoje que a Universidade credita muito mais a inteligência de exatas (sem preconceito algum!) que gera resultados lucrativos imediatos do que o pensamento crítico de humanas que sempre problematiza seus objetos.

O simples fato de você desejar atuar efetivamente como cidadão nesta sociedade, regida por um Estado exageramente corrupto, é um traço de dissonância com o brasileiro médio, infelizmente.

PS: sem coesão, admito.

Anônimo disse...

Ando me queixando muito do meu "cotidiano violento" - violento no sentido de "aceleração" que você descreveu logo acima, Andréa. A gente acorda bem cedo, estuda, estuda, estuda, trabalha, trabalha, trabalha, trabalha, chega em casa e dorme. E no tempo livre... o que fazer com esse tempo? Nesse sentido encontro paridade entre as suas angústias e as minhas. Sou um daqueles autênticos personagens kafkianos, arrastando-se desinteressados pela grande grande cidade.
Quanto ao seu comentário, Renan, ando pensando bastante nesses últimos tempos também na questão do anacronismo (e precisaria refletir um pouco mais para formular o que penso). Acho que chegamos em um ponto da História, um grau de consciência de nossas deficiências e impotências, que talvez estejamos retornando a estágios há muito passados, o que de certa forma neutralizaria e também atualizaria idéias de anacronismo, se é que isso é possível.

Andréa Catrópa disse...

Rodrigo, é interessante porque estou justamente escrevendo um texto no qual aproveito essa inversão de valores relativa à questão do "anacrônico" em textos da Célia Pedrosa e do Ehzemberger. Em um momento diverso so nosso, e com outras implicações, também os surrealistas buscavam no anacrônico uma forma de se contrapôr à "racionalidade progressista".