Aviso:

Agora, a oficina online poesia feita de quê? possui um blog próprio http://poesiafeitadeque.blogspot.com/. Estão todos convidados: participem!

quarta-feira, janeiro 17, 2007



Um abrigo entre os livros

Anotei o telefone de Severino para combinar uma visita à Biblioteca que ele ajudara a organizar no Prestes Maia. Veio o fim do ano, viajei ao Rio e a Buenos Aires, voltei ao trabalho e, em meio às atribulações cotidianas, acabei esquecendo o projeto da visita...
Em 1 de fevereiro de 2006, no entanto, a Biblioteca Comunitária Prestes Maia rendeu uma matéria de capa da Folha de S. Paulo, assinada pela repórter Afra Balazina. Ela entrevistou seu Severino e outros moradores da ocupação – como o marreteiro Lamartine Brasiliano, leitor de Gilberto Freyre e Graciliano Ramos –, chamando a atenção para a defesa do direito à leitura, em condições as mais adversas. Na época, os moradores da Ocupação enfrentavam a ameaça de despejo iminente devido à vitória dos proprietários daquele imóvel (desocupado há mais de uma década) em uma ação de reintegração de posse.
Fiquei muito impressionado com a matéria. Em um país onde tudo conspira para aumentar a distância entre os pobres e a cultura letrada, como não ser tocado pelo esforço desses homens que, sem possuir a garantia de um teto, procuram um abrigo entre os livros?
Imediatamente fui atrás do telefone que eu havia anotado a fim de marcar uma ida ao Prestes Maia. De quebra, lembrei também da conversa que eu havia tido, dias antes, com uma amiga, a Dolores Prades, que estava à procura de um nome para homenagear na entrega do II Prêmio Barco a Vapor, promovido pela Edições SM, onde trabalho atualmente. Tal prêmio, concedido a obras inéditas no campo da literatura infanto-juvenil, costuma homenagear todos os anos figuras importantes no campo da criação literária ou do fomento à leitura. Propus então a Dolores que fosse comigo ao encontro com seu Severino a fim de conhecer o trabalho por ele desenvolvido. Ela, que também havia lido a matéria na Folha, aceitou mais do que depressa.
Assim, lá fomos nós, em uma tarde de domingo ao Prestes Maia. Conversamos longamente com seu Severino e Roberta e pude então conhecer uma experiência urbana inspiradora, exemplo de resistência concreta às práticas de exclusão social a que me referi no início desta entrevista. Cerca de 468 famílias, mais de 1500 pessoas morando em um único prédio, numa situação de ilegalidade que, paradoxalmente, faz valer o direito à moradia, previsto no artigo 6.o da Constituição Federal.
Desde aquela tarde passei a freqüentar o Prestes Maia, buscando colaborar de alguma maneira com a luta daquelas pessoas – por moradia, por cultura, por dignidade. Vingou a idéia de uma homenagem à Biblioteca, que acabou se materializando sob a forma de um vídeo intitulado "Um abrigo entre os livros" (produzido pela Edições SM, com roteiro da Dolores e direção da atriz e videomaker Luaa Gabanini), do qual participei como entrevistador e redator e que foi exibido em 28 de agosto, no auditório do Itaú Cultural, durante a cerimônia de entrega do prêmio Barco a Vapor.
Além disso, junto com Pádua Fernandes, meu companheiro de todas as horas, organizei um ciclo de palestras denominado “O direito à cidade”, convidando pessoas de diferentes áreas – psicologia, direito, literatura, geografia, arquitetura, sociologia ambiental – para pensar, a partir de diferentes perspectivas, sobre as possibilidades de um uso mais democrático do espaço urbano.
Esse ciclo – do qual participaram nomes como o do professor Aziz Ab’Saber e a psicanalista Maria Rita Kehl – ocorreu em duas etapas, nos meses de abril e novembro, e integrou uma série de atividades desenvolvidas no prédio durante o ano passado (cineclube, exposições, oficinas de arte, de alfabetização, de reciclagem) com o objetivo de chamar a atenção da imprensa e da opinião pública para a situação do prédio – que, apesar dos esforços dos moradores, continua sendo de grande precariedade – e de caracterizá-lo não somente como um local importante não apenas no que concerne ao problema da moradia, mas também como um equipamento cultural da cidade de São Paulo.
Isso acabou gerando matérias em revistas e jornais (Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Carta Capital, Época), programas de televisão e até uma visita do escritor e bibliófilo José Mindlin à Biblioteca da Ocupação, conquanto não tenha alterado a situação legal dos moradores, que continuam ameaçados de despejo, apesar de uma suspensão provisória da ação de reintegração (entre abril e agosto do ano passado) por um agravo de instrumento interposto pelos advogados do MSTC e de promessas feitas durante o período eleitoral, quando alguns políticos acenaram com uma possível verba federal para desapropriação do imóvel, futuramente transformado em moradia popular.
Para este ano, estamos planejando novas ações. A Edições SM deve contratar nos próximos meses uma bibliotecária para organizar (indexar, catalogar) o acervo bibliográfico (que hoje conta com mais de 10.000 títulos). De minha parte, pretendo realizar, com Dolores e Luaa, um novo documentário sobre a biblioteca, aproveitando parte do material não utilizado em “Um abrigo entre os livros”.
[foto: Fabio Weintraub (Severino Manoel de Souza organiza o acervo da Biblioteca Prestes Maia)]

Nenhum comentário: