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quarta-feira, janeiro 17, 2007

Você está escrevendo algo, tem projetos literários no momento? Poderia nos enviar algum poema inédito?

Paisagens morais

Sim, estou trabalhando em um livro novo, a que dei o título provisório de Paisagens morais. Fui contemplado com uma bolsa de estímulo à criação literária concedida pela Secretaria de Estado da Cultura e, se tudo der certo e as musas consentirem, devo concluir o livro até o final deste ano.
Ainda estou muito no começo, com pouca coisa escrita (tudo pode mudar em função dos poemas vindouros), mas a idéia é seguir pesquisando sobre as diversas modalidades de desenraizamento contemporâneo. Para tanto pensei concentrar a atenção no impacto subjetivo associado às novas formas de organização do espaço urbano, donde a idéia de paisagem moral.
Na verdade, acho que deparei esse “conceito” pela primeira vez em uma carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Nessa carta, escrita em 18 de janeiro de 1933, Mário lamenta o abandono do endereço em que Bandeira morou vários anos, na Rua do Curvelo, número 51, não apenas porque a mudança punha a nu a miséria em que o companheiro vivia (fora obrigado a se mudar por dificuldades com o aluguel), mas também pelo que tal mudança representava em termos morais. Diz ele: “o Curvelo 51 fazia tanto parte do você meu que a mudança me fez sofrer realmente. Sofri em mim e sofri por mim, com esse você perdido nos ares, feito um desses voadores de Cícero Dias, cujo sentido a gente consegue aferrar totalmente. Você é suficientemente elevado pra não zangar com o que vou dizer, mas meio que você ficou sem caráter. Não falo bem sem caráter moral, falo alargando, totalizando a palavra, isto é, compreendendo também o caráter moral naquilo que é a sua agudeza periférica intransigente. Você ficou diminuído muito, empobrecido de todos os valores. Você se desencantou”.[1]
O traçado das ruas de um bairro, largura das calçadas, a altura das janelas, sons que atravessam o espaço (músicas, pregões, gritos), a quantidade de luz filtrada pelos edifícios... todas essas coisas compõem um caráter, definem um ethos.
Assim, a idéia de “paisagem moral” parece-me especialmente oportuna para lidar com a figuração poética da cidade, termo que não deve ser entendido simplesmente como cenário, aglomerado de pessoas, carros e edifícios. O que me parece mais essencial na experiência urbana atual é um novo padrão de sociabilidade ligado à idéia de conflito, o que também se relaciona à idéia de perda dos direitos civis a que estão condenados aqueles que ficaram na calçada.
Como já deu para perceber, creio que seguirei na trilha aberta por Novo endereço. A novidade prende-se ao fato de que, para elaboração dos poemas, pretendo fazer uso de textos de natureza heteróclita, como entrevistas com moradores de rua da cidade de São Paulo, que redundarão, muito provavelmente, em estilizações desses discursos à margem.
Mas não devo adiantar muito mais do que estou fazendo, porque falar demais sobre o que ainda se encontra em gestação dissipa a energia necessária à consecução dos projetos. Para encerrar então, atendendo ao seu pedido, envio-lhe um poema inédito.
[1] In Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Organização, introdução e notas: Marcos Antônio de Moraes. São Paulo: Edusp/ IEB, 2000, p. 548. Grifo meu.

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