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sábado, março 03, 2007

Dualidade dos tempos: aspectos da poesia de Eduardo Lacerda

“A imagem poética ilumina com tal luz a consciência, que é vão procurar-lhe antecedentes inconscientes. Pelo menos a fenomenologia tem boas razões para tomar a imagem poética em seu próprio ser, em ruptura com um ser antecedente, como uma conquista positiva da palavra. […] Dir-se-ia que a imagem poética, em sua novidade, abre um porvir da linguagem”.

Gaston Bachelard, “A Poética do Devaneio”

Como diz Bachelard, em sua Poética do Devaneio*, a novidade gerada pela sutileza da imagem poética provoca novo animo nas construções tradicionais, “renova e redobra a alegria de maravilhar-se”. É como diz e mostra, em sua obra, João Guimarães Rosa, que reconstrói a linguagem a partir do intuito de despertá-la em seus significados: Sua linguagem opera a partir do contato de uma língua renovada com seu falante, que é obrigado a deixar para traz os signos estáticos anteriormente concebidos.
Eduardo Lacerda, por sua vez, em alguns momentos, confere às imagens poéticas uma certa renovação que desperta no leitor de poesia uma espécie de desconforto em relação às imagens tradicionais, obrigando-o a entrar em contato com elas e construí-las a partir de seu ponto de vista. Podemos observar tal mecanismo, por exemplo, no poema Iemanjá, no qual evoca o mar – figura extremamente tradicional em poesia – estabelecendo uma comparação entre o mesmo e um corpo em atividade muscular: “Virá/ de fora/ e/ rasgará, a nado/ o músculo/ da água”.
O trabalho que empreende com a linguagem, apresenta -- dentro de limites -- aspectos bastante interessantes. Causa no leitor estranhamento ao utilizar uma linguagem, por vezes, reconhecível e comum, combinada a uma estruturação formal – tanto métrica e rítmica, quanto vocabular – inesperada e até mesmo excêntrica. A configuração do que há de relativamente novo é em si de estranheza em relação à poesia e ao mundo em que ela se insere. Isso se demonstra no próprio vulto do poema, na página em que é posto em estrofes, muitas vezes, tradicionais como dísticos e quadras, a ver no poema Idéia de família. A forma como Lacerda concebe as estruturas tradicionais, junto às imagens que utiliza, conferem uma particularidade que o contrapõe à tradição poética e faz com que os poemas não fujam a ela, mas observem-na de forma particular.
Essa habilidade em trabalhar forma, conteúdo e tradição de modo eficaz marca os pontos positivos da produção do poeta. Em contraponto, percebo não haver inovações estéticas mais radicais em seus poemas. Parece-me algo extremamente bem tramado, que, entretanto, estabelece pouco diálogo com a produção de arte contemporânea. Uma opinião bastante particular baseada na idéia de que, ao contrário do que pensam os “pós-modernos”, a poesia contemporânea não sofre de um esgotamento em relação aos recursos de vanguarda, mas sofre a falta do diálogo dos poetas com a realidade. Não realidade, enquanto reprodução do mundo externo – a própria fenomenologia prova não haver tal mundo – e sim, a realidade enquanto o cenário composto pelo diálogo entre o artista e a produção artística que o avizinha. Creio que sofremos por não haver público que nos leia e, por isso, deixar de nos envolver com qualquer público, relegando e obrigando a poesia aos poetas.
O poema Iemanjá apresenta-nos um quadro muito rico que se compõe da tradição cultural afro-brasileira e explora com muito fôlego a força da linguagem poética e seu caráter epifânico. O segundo poema, Embrulho se constrói a partir de uma força centrífuga, que pode causar espanto ao leitor. O eu lírico, ao introduzir-se de maneira espantosa numa situação banal – sua própria festa de aniversário – questiona o leitor (e a si mesmo) a respeito do valor ontológico da passagem do tempo e da forma com que a cultura nos leva a relacionarmo-nos com essa passagem.
Por fim, e o mais interessante dos três, o poema Idéia de família estabelece uma reflexão quanto ao valor da tradição – simbolizado pela relação entre o eu lírico, seu pai e seu avô, ligados culturalmente por um objeto, a colher de pau -, apontando para o fato de que ela está se esgarçando. O poeta se recusa à tradição, que para ele, vem “como castigo”. Rompe com ela, atitude, ao meu ver, positiva, mas positiva apenas se acompanhada de uma nova forma de organizar a cultura. Ou seja, um excelente poema pela forma como se compõe, pela discussão que abarca, que peca apenas por inovar pouco ao recusar a tradição poética e, ao mesmo tempo adotá-la formalmente.
Creio, como também jovem poeta, que devemos lutar para garantir o poder da arte poética de, como disse Bachelard, abrir “um porvir da linguagem”.

*BACHELARD, G., A Poética do Devaneio, trd. Antonio Pádua Danesi – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2006 – (Tópicos)

Marcelo Bonvicino




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